quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Norma Jurídica e Texto de Lei - Aspectos Práticos de uma Taxonomia

I . Introdução

Muitas propostas cognoscentes, ignoram ou desconhecem uma distinção entre Lei e Norma Jurídica, interpretando até mesmo que o texto da lei é a norma jurídica. Ledo engano.

Outro grande engano e, certamente o mais negativo deles, é o pensamento, por parte de tais propostas e de muitos profissionais do meio jurídico, de que realizar estudos voltados para esta taxonomia, definindo o que é uma e outra é um trabalho que não tem nenhuma aplicação prática, sendo simplesmente uma filosofia estéril para aplicação do Direito.

Isto também não é verdade.

Portanto, com o intuito de sanar tais posicionamentos equivocados, este estudo possui dois objetivos:

O primeiro será explicitar o que é a norma jurídica diferenciando-a de texto de lei, um assunto que interessará àqueles que amam o saber jurídico e filosófico no seu mais profundo sentido epistemológico.

O segundo, e mais importante, será demonstrar no tópico III que, existe uma aplicação prática de grande importância para tal conhecimento. Tão importante que pode alterar totalmente a hermenêutica do Direito Positivo em determinados momentos e que nós nem sempre estamos atentos a isso.Por fim será uma pequena oportunidade de demonstrar a importância deste tipo de abordagem àqueles que, infelizmente, insistem em mediocrizar o Direito e torná-lo destituído de um sentido epistemológico.

Urge por fim, para maior compreensão e aprofundamento do assunto sugerir a leitura, das partes que trabalham com o tema, nos seguintes livros: Direito Tributário, Linguagem e Método, de Paulo de Barros Carvalho; Curso de Direito Tributário, também de Paulo de Barros Carvalho; Escritos Jurídicos e Filosóficos de Lourival Vilanova; Norma Jurídica Tributária de Marco Aurélio Greco; e Teoria Geral das Normas de Hans Kelsen.
II . O que é Norma Jurídica?
Norma Jurídica não é texto da Lei.
O texto de Lei nada mais é do que signos escritos, os quais formam proposições com enunciados prescritivos. O texto de lei serve apenas de suporte físico para a existência destas proposições e, posteriormente, para a norma jurídica.
Uma proposição, no sentido semiótico do termo, é a construção lógica dentro de uma asserção que denota as condições de entendimento desta asserção.
Em outras palavras, a proposição é a expressão verbal lógica extraída de um texto.
A semiótica explica a proposição como sendo o extrato inteligível da experiência física dos significados dos signos para o plano em que se realiza a elaboração intelectual e que confere à estruturação sintática de uma oração o contexto pessoal necessário.
Neste sentido, a proposição no texto de lei, é a estrutura lógica que dá sentido ao enunciado prescritivo contido na lei. A proposição é, portanto, aquilo que dá significado para um enunciado, seja ele descritivo ou prescritivo.
Veja o seguinte exemplo esclarecedor: “É proibido fumar”. Sem dúvida, um enunciado prescritivo de conduta. A proposição nesta frase se encontra na significação percebida pelo leitor. Se estivesse escrito “é fumar” ou “proibido” ou ainda “e p f” não haveria proposição, pois não há inteligibilidade a ser extraída, seriam apenas palavras e signos que, embora tenham um significado, não formam qualquer estrutura lógica para o plano intelectual. Ou seja, têm significado, mas não têm significação.
Compreendido o que é um texto e uma proposição, passa-se à Norma Jurídica.
A Norma Jurídica tem familiaridade com a proposição, pois ambas estão no plano do inteligível, do subjetivo, e esta análise partirá do seguinte conceito:
Norma Jurídica deve ser entendida como a significação completa obtida a partir da leitura conjugada ou dissociada dos textos do Direito Positivo (Lei, Decretos, decisões judiciais, etc.), e que possui como elementos essenciais um antecedente e um conseqüente normativo. A norma é, portanto, uma estrutura lógico-sintática de significação que conceitua fatos e condutas. Conforme bem leciona Paulo de Barros Carvalho :
“(...) A norma jurídica é exatamente o juízo ou o pensamento que a leitura do texto provoca em nosso espírito.”
Entretanto, diferente da simples proposição e também da norma no sentido amplo da palavra, a norma jurídica exige antecedentes e conseqüentes.
Usando o exemplo anterior, “É proibido Fumar”:A frase, como observado anteriormente, é uma proposição, pois o leitor extrai a significação de que não é permitido que se fume.
Contudo, tal prescrição só será Norma Jurídica se conjugada a outro texto prescritivo ou ato normativo existente dentro do sistema de Direito Positivo que estabeleça conseqüências para a infração à conduta prescrita. Caso contrário, a Norma Jurídica será deficiente.
Observe, portanto, que a diferença entre a proposição e a Norma Jurídica é a existência de antecedentes e conseqüentes na sua formação inteligível.
Tomando novamente o exemplo, “é proibido fumar”, se isto é uma proposição solta e dispersa de conseqüências, não será mais do que um enunciado prescritivo, ou seja, será apenas uma forma usada na função pragmática de prescrever condutas e, assim, não será Norma Jurídica, pois estas exigem significações construídas a partir dos textos estruturados consoante uma forma lógica dos juízos condicionais, compostos pela associação de duas ou mais proposições prescritivas.
Veja o ensinamento de Ricardo Guastini para buscar mais clareza:
"Un documento normativo (una fonti del diritto) è un aggregato di enunciati del discorso prescritivo."
E o quadro seguinte para maior esclarecimento:
É claro que, se a norma de que estamos tratando é de ordem jurídica, a interpretação normativa para fins de aplicação prática dos enunciados prescritivos é restrita e monopolizada pelo Estado, principalmente pelo Poder Judiciário.

Assim ensina a lição tirada do Vocabulaire Juridique de Gérard Cornu:

"La norme juridique émane d'une autorité investie d'un pouvoir pour qui elle est exécutoire et est susceptible d'être contrôlée."

Isso quer dizer que, embora possa haver divergências doutrinárias entre estudiosos do Direito Positivo, só a instituição devidamente autorizada poderá impor qual das interpretações deverá prevalecer.

Exemplo disso é o que ocorreu no caso da discussão acerca do FGTS, por exemplo, na qual se tentava estabelecer se ele seria ou um Tributo, discussão que, diga-se de passagem, tem sido das mais controvertidas. Neste caso, só o STF por meio de seu julgamento poderia emitir a um parecer normativo, uma Norma Jurídica, definindo se o mesmo é ou não um Tributo, o que, inclusive, já fez por meio do Recurso Extraordinário 100.249 no qual foi decidido que o FGTS não tem natureza tributária.

Ante o exposto, pode-se concluir que a Lei nada mais é do que um veículo introdutor de Normas Jurídicas, na qual a Norma Jurídica é que passará a integrar o sistema de Direito Positivo, pois que, é ela a essência, enquanto a Lei é mero suporte físico para sua existência.

Tanto isso é verdade que, além da Lei, existem outros meios de inserção de Normas Jurídicas, ou veículos introdutores de Normas Jurídicas, tais como as decisões judiciais que produzem Normas Jurídicas do tipo Individual e Concreta.

Todavia, tal assunto não merecerá aqui a devida consideração porque demandaria a realização de uma subclassificação das Normas Jurídicas, qual seja, a taxonomia das normas Gerais e Abstratas e das Individuais e Concretas, as quais demandam um estudo próprio em outra oportunidade. O importante aqui será demonstrar que, embora tudo isso possa parecer filosofia desnecessária e estéril para a aplicação do Direito no dia-a-dia forense, é, ao contrário, de extrema importância para tal exercício, conforme será demonstrado a seguir.

III. Aplicação Prática da Teoria da Norma Jurídica.

Importantes construções interpretativas do Direito têm como ponto de partida a Norma Jurídica, o que torna difícil entender o pouco relevo que algumas propostas cognoscentes lhe atribuem.

Para demonstrar a importância do entendimento quanto à teoria da Norma Jurídica cujo tópico anterior tentou explicar, seguem-se aqui alguns exemplos de onde se aplica tal teoria na forma prática, ou seja, a comprovação final de que o texto de Lei não é em si a Norma Jurídica e de que é de suma importância saber disso, pois existem até mesmo Leis com Normas Jurídicas incompletas e deficientes que, uma vez não observadas no momento da sua aplicação, perdem completamente sua eficácia.

No primeiro exemplo, observe a seguinte lei fictícia:
Prefeitura Municipal de Estagira, Lei Municipal 001 de 10/01/2009
Art. 1º Esta taxa de controle de obras tem como fato gerador a prestação de serviço de conservação de imóveis, por empresa ou profissional autônomo, no território municipal.Art. 2º A base de cálculo dessa taxa é o preço do serviço prestado.§1º - A alíquota é de 3%.§2º - O valor da taxa será calculado sobre o preço deduzido das parcelas correspondentes ao valor dos materiais utilizados na prestação do serviço.Art. 3º Contribuinte é o prestador de serviço.Art. 4º Dá-se a incidência dessa taxa no momento da conclusão efetiva do serviço, devendo, desde logo, ser devidamente destacado o valor na respectiva “NOTA FISCAL DE SERVIÇOS” pelo prestador de serviço.Art. 5º A importância devida a título de taxa deve ser recolhida até o décimo dia útil do mês subseqüente, sob pena de multa de 5% sobre o valor do tributo devido.Art. 6º Diante do fato de serviço prestado sem a emissão da respectiva “NOTA FISCAL DE SERVIÇOS”, a autoridade fiscal competente fica obrigada a lavrar “Auto de Infração e Imposição de Multa”, em decorrência da não-observância dessa obrigação, no valor de 50% do valor da operação efetuada.

Pois bem, agora se pergunta ao caríssimo leitor: Quantas Normas Jurídicas há nessa lei? Qual delas afinal institui o tributo?

A Norma que institui o tributo, como observado anteriormente, não é um artigo apenas e não está necessariamente escrita explicitamente no texto de lei. Ela é o fruto de um trabalho de interpretação do texto de Lei, observando seus antecedentes e conseqüentes.
Isto porque a Norma que institui o tributo é a Regra Matriz de Incidência Tributária, que, neste caso, é a conjugação de: art. 1°; art. 2°, § 1°; art. 2° caput; art. 3° e art. 4°; conforme explicitado a seguir:
Antecedentes:
Critério material: prestação de serviço de conservação de imóveis.
Critério temporal: momento da conclusão efetiva do serviço.
Critério espacial: no território municipal.
Conseqüentes:
Critérios qualitativos: (sujeitos ativo e passivo)sujeito ativo: o município de Estagira. sujeito passivo: prestador do serviço.
Critérios quantitativos:Base de Cálculo: preço do serviço prestado, deduzido das parcelas correspondentes ao valor dos materiais utilizados na prestação do serviço. Alíquota: 3%.
Utilizando este mesmo esquema, veja como se extrai as Normas Jurídicas que estão contidas na fictícia lei que homenageia a antiga cidade onde nasceu o filósofo Aristóteles:
A primeira como já observado, é a Regra Matriz de Incidência Tributária.
A segunda concerne ao destaque do tributo na Nota fiscal, art. 4º:
Antecedente:Concluído o Serviço
Conseqüente: Deve-se destacar o valor do tributo na nota fiscal
A terceira trata da data do recolhimento do tributo. Extrai-se do Art. 4º combinado com art. 5º:
Antecedente: Executado o Serviço.
Conseqüente: Deve-se recolher o tributo até o décimo dia útil do mês subseqüente.
Há uma quarta Norma que trata da multa pelo não recolhimento. Está evidenciada no art. 5º:
Antecedente: Não recolhido o tributo na forma da lei.
Conseqüente: É devida a multa de 5% sobre o valor do tributo.
Ainda há uma quinta Norma que trata da não emissão da nota fiscal, contida no art. 6º:
Antecedente: Prestado o Serviço sem a emissão de nota fiscal.
Conseqüente: É devida a multa de 50% sobre o valor do tributo.
Por derradeiro, há uma sexta Norma que trata do dever de lavrar o auto de infração. Também contida no art. 6º:
Antecedente: Prestado o serviço sem a emissão de nota fiscal.
Consequente: Deve a autoridade fiscal lavrar o Auto de Infração.
Um outro excelente exemplo da importância prática existente por trás da Teoria da Norma jurídica e que é fundamental para o dia-a-dia forense é a questão da Declaração de Inconstitucionalidade sem Redução do Texto Legal.

Esta espécie de declaração de inconstitucionalidade é utilizada sobre Lei ou Ato Normativo cuja interpretação possa ser múltipla, e age como um mecanismo para atingir uma interpretação que seja compatível com a Constituição e assim preservar a constitucionalidade daquela Lei ou Ato.
Nas palavras de Alexandre de Moraes,

“(...) no caso de lei ou ato normativo com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico.”

Ora, neste caso o que é observado é a Norma Jurídica. E o STF ou outra instância do Judiciário, órgão devidamente autorizado a emitir Normas Jurídicas, determinará qual será a interpretação (significação) que uma Lei ou Ato Normativo deverá conter.
Assim, se há uma Lei (Lei N), cujo texto é constitucional, mas que a sua aplicação está sendo feita de forma inconstitucional (aplicação de forma X), o Judiciário poderá determinar que a Lei “N” seja aplicada de forma “Y”, uma vez que a interpretação “X” é inconstitucional.

Ou seja, a lei pode ser constitucional, mas a Norma Jurídica pode ser extraída pela autoridade competente (um juiz de primeira instância ou uma autoridade administrativa, por exemplo) de forma equivocada e inconstitucional. Portanto, uma lei pode ter várias Normas Jurídicas e, em alguns casos bizarros, até Norma Jurídica incompleta ou deficiente.

Eis um caso em que a Lei possui Norma Jurídica deficiente: Observe esta estranha e curiosa decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, noticiada pela assessoria de comunicação daquele Tribunal, transcrita abaixo.

16/03/2009 - Recusa de moedas não gera indenizaçãoUma cliente do Banco Bradesco S/A teve seu pedido de indenização por danos morais negado pela 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). V.L.B.B teria tentado pagar uma conta no valor de R$ 44,54 com uma grande quantidade de moedas de R$ 0,50.De acordo com a V.L.B.B., o banco não teria observado o artigo 9º da Lei nº 8.697/1993, que dispõe que “ninguém será obrigado a receber, em qualquer pagamento, moeda metálica em montante superior a cem vezes o valor respectivo da face”, o que não era o seu caso. A mulher alegou que houve humilhação pelo modo como foi tratada na agência.O Banco Bradesco afirmou que é procedimento normal da instituição encaminhar a pessoa que porta muitas moedas a outro setor, o que é, inclusive, de conhecimento geral.Em 1ª Instância, a ação foi julgada improcedente. Inconformada, V.L.B.B. recorreu ao TJMG, requerendo a reforma da sentença. Os desembargadores da 9ª Câmara Cível, no entanto, negaram provimento ao recurso.Para o relator do processo, desembargador Generoso Filho, para se falar em dano moral, não basta o simples desapontamento ou dissabor. Para que haja o dever de indenizar, é necessária a prova de que o fato tenha causado sofrimento, vexame e humilhação, atingindo a honra do indivíduo, algo que a apelante não conseguiu comprovar.Portanto, para os desembargadores, a conduta do funcionário ao ter recusado o recebimento do valor, mesmo que tenha causado aborrecimento à cliente, não caracteriza uma ação e o pagamento de danos morais.Acompanharam o voto do relator, os desembargadores Osmando Almeida (revisor) e Pedro Bernardes (vogal).
Assessoria de Comunicação Institucional – Ascom - TJMG - Unidade Goiás
Ora, analise: Existe uma obrigação legal que impõe o recebimento de moedas até o limite previsto em lei de “cem vezes o valor respectivo da face” da moeda. Mas se alguém descumpre tal determinação legal, como ocorreu com o banco, o que se pode fazer?
Nada?

Pelo visto, estamos diante de uma lei em que a norma jurídica está incompleta!

Pense bem, se numa lanchonete você quiser pagar com moedas um pacote de bolachas no valor de 03 reais e o vendedor, cordialmente (de forma que não cause dano moral), recusar a receber, não há nada que se possa fazer! Pelo menos, se considerado o entendimento da decisão acima noticiada.
Neste caso, o Egrégio Tribunal Mineiro, no momento em que extraiu a Norma Jurídica Geral e Abstrata contida na Lei, deveria ter percebido tal deficiência nela existente e, ao emitir sua decisão (a qual também contém Norma Jurídica, porém de caráter Individual e Concreta) impor uma indenização sob caráter pedagógico, corrigindo a falha cometida pelo legislador. Entretanto, creio eu, que aquele Tribunal, assim como outros por aí, não está atento à questão da teoria da Norma Jurídica.

Isso é muito sério, pois o legislador nem sempre está atento a questões jurídicas que deveriam ser resolvidas pelos Tribunais e, por isso, a necessidade de que o Judiciário fosse mais atuante no momento em que extrai e produz normas jurídicas e realiza a hermenêutica do ordenamento, fazendo seu trabalho de Fonte de Direito que é.

Todavia, a aplicação do Direito nos tribunais tem estado estrita a uma hermenêutica baseada unicamente numa abordagem pouco epistemológica do Direito.

Infelizmente, o que se vê muitas vezes nas decisões e argumentações jurídicas é uma excelente demonstração da capacidade de ler, ato que até mesmo as crianças conseguem.

Ao contrário, o que se espera de um jurista, seja ele juiz, advogado ou representante do Ministério Público, é que tenha a capacidade de aplicar os artigos de lei submetendo-os a uma hermenêutica sistemática e harmônica com o ordenamento existente, com o sistema de Direito Positivo.

E hermenêutica superficial é, muitas vezes, o que acontece quando se está diante de um caso em que se aplica o princípio do Lex Specialis derrogat Lex Generalis.

Por este princípio costuma-se realizar, superficialmente e equivocadamente, a interpretação de que uma Lei Especial (ex: Código de Defesa do Consumidor e Lei de Execução Fiscal) que verse sobre determinado tema deva prevalecer sobre uma Lei Geral (ex: Código de Processo Civil e Código Civil) interpretação esta um tanto equivocada.

Partindo de uma hermenêutica fundamentada na teoria da Norma Jurídica, verifica-se que interpretar o princípio da Lex Specialis derrogat Lex Generalis não é apenas translada-lo do Latim para o Português como sendo Lei Especial derroga Lei Geral, assim, tão simplesmente.

Isto porque, como enfatizado no tópico anterior, a Lei é mero suporte físico da Norma Jurídica, portanto, o que se extrai do referido princípio é que Norma Jurídica Especial derroga Norma Jurídica Geral.

Assim, sempre que uma Norma Jurídica específica contida em uma Lei Geral não tenha correspondente na Lei Especial, continuará a vigorar normalmente aquela e não esta, ainda que ambas versem sobre o mesmo assunto.

Observe o exemplo para melhor compreensão: A recente reforma do Código de Processo Civil (Lei Geral) trouxe inovações no procedimento de Execução, dentre elas, a contida no artigo 739-A, a qual regula e reduz a possibilidade de concessão do efeito suspensivo nos Embargos do devedor.

Por outro lado, no caso das Execuções Fiscais, existe uma Lei Especial, a Lei 6.830/80, que regula o procedimento desta espécie de Execução, disciplinando as condições, o prazo para oferecimento dos Embargos do Devedor e o respectivo início da contagem, bem como o prazo para impugnação e as matérias vedadas e permitidas ao enfrentamento. Por esta razão, muito se tem discutido acerca da aplicação do artigo 739-A do CPC sobre os Embargos do Devedor na Execução Fiscal, posto que, sendo este procedimento regulado por Lei Especial, tais regras a respeito do efeito suspensivo trazidas pela Lei Geral (art. 739-A do CPC) não deveriam ser aplicadas à Execução Fiscal (regulada pela Lei Especial 6.830/80) por força do princípio Lex Specialis derrogat Lex Generalis.

Contudo, se realizada uma hermenêutica da Lei de Execuções Fiscais fundamentada na Teoria da Norma Jurídica, verificar-se-á que não existe nela uma Norma Jurídica que regule estritamente o efeito suspensivo nos Embargos do Devedor.

E considerando que, não a Lei Especial, mas sim a Norma Especial é que se sobrepõe à Norma Geral, é possível concluir que o artigo 739-A do Código de Processo Civil prevalecerá sobre a Lei Especial que, como visto, não tem Norma Jurídica que verse a respeito do efeito suspensivo nos Embargos do Devedor. Inclusive, tem sido este o entendimento do STJ a respeito de tal discussão. Vide o julgamento do Recurso Especial 1024128/PR.

Portanto, se considerada a Teoria da Norma Jurídica na aplicação do princípio Lex Specialis derrogat Lex Generalis,, é possível a existência de casos em que a Lei Geral prevalecerá sobre a Lei Especial. Este entendimento é partilhado por muitos adeptos da Teoria da Norma Jurídica, tais como o Juiz Paulo César Conrado, eminente professor da USP e da PUC/SP, quem tive o sincero prazer de conhecer pessoalmente, e o renomado tributarista Paulo de Barros Carvalho.

Por fim, conclui-se que o trabalho de identificar a Norma Jurídica está intrínseco ao bom desempenho do trabalho de interpretação do Sistema de Direito Positivo.

Ante o exposto, espero ter concluído o objetivo proposto, mostrando, não só as nuances científicas que envolvem a teoria da Norma Jurídica, como também sua indispensável análise no âmbito da prática forense.

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