quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Norma Jurídica e Texto de Lei - Aspectos Práticos de uma Taxonomia

I . Introdução

Muitas propostas cognoscentes, ignoram ou desconhecem uma distinção entre Lei e Norma Jurídica, interpretando até mesmo que o texto da lei é a norma jurídica. Ledo engano.

Outro grande engano e, certamente o mais negativo deles, é o pensamento, por parte de tais propostas e de muitos profissionais do meio jurídico, de que realizar estudos voltados para esta taxonomia, definindo o que é uma e outra é um trabalho que não tem nenhuma aplicação prática, sendo simplesmente uma filosofia estéril para aplicação do Direito.

Isto também não é verdade.

Portanto, com o intuito de sanar tais posicionamentos equivocados, este estudo possui dois objetivos:

O primeiro será explicitar o que é a norma jurídica diferenciando-a de texto de lei, um assunto que interessará àqueles que amam o saber jurídico e filosófico no seu mais profundo sentido epistemológico.

O segundo, e mais importante, será demonstrar no tópico III que, existe uma aplicação prática de grande importância para tal conhecimento. Tão importante que pode alterar totalmente a hermenêutica do Direito Positivo em determinados momentos e que nós nem sempre estamos atentos a isso.Por fim será uma pequena oportunidade de demonstrar a importância deste tipo de abordagem àqueles que, infelizmente, insistem em mediocrizar o Direito e torná-lo destituído de um sentido epistemológico.

Urge por fim, para maior compreensão e aprofundamento do assunto sugerir a leitura, das partes que trabalham com o tema, nos seguintes livros: Direito Tributário, Linguagem e Método, de Paulo de Barros Carvalho; Curso de Direito Tributário, também de Paulo de Barros Carvalho; Escritos Jurídicos e Filosóficos de Lourival Vilanova; Norma Jurídica Tributária de Marco Aurélio Greco; e Teoria Geral das Normas de Hans Kelsen.
II . O que é Norma Jurídica?
Norma Jurídica não é texto da Lei.
O texto de Lei nada mais é do que signos escritos, os quais formam proposições com enunciados prescritivos. O texto de lei serve apenas de suporte físico para a existência destas proposições e, posteriormente, para a norma jurídica.
Uma proposição, no sentido semiótico do termo, é a construção lógica dentro de uma asserção que denota as condições de entendimento desta asserção.
Em outras palavras, a proposição é a expressão verbal lógica extraída de um texto.
A semiótica explica a proposição como sendo o extrato inteligível da experiência física dos significados dos signos para o plano em que se realiza a elaboração intelectual e que confere à estruturação sintática de uma oração o contexto pessoal necessário.
Neste sentido, a proposição no texto de lei, é a estrutura lógica que dá sentido ao enunciado prescritivo contido na lei. A proposição é, portanto, aquilo que dá significado para um enunciado, seja ele descritivo ou prescritivo.
Veja o seguinte exemplo esclarecedor: “É proibido fumar”. Sem dúvida, um enunciado prescritivo de conduta. A proposição nesta frase se encontra na significação percebida pelo leitor. Se estivesse escrito “é fumar” ou “proibido” ou ainda “e p f” não haveria proposição, pois não há inteligibilidade a ser extraída, seriam apenas palavras e signos que, embora tenham um significado, não formam qualquer estrutura lógica para o plano intelectual. Ou seja, têm significado, mas não têm significação.
Compreendido o que é um texto e uma proposição, passa-se à Norma Jurídica.
A Norma Jurídica tem familiaridade com a proposição, pois ambas estão no plano do inteligível, do subjetivo, e esta análise partirá do seguinte conceito:
Norma Jurídica deve ser entendida como a significação completa obtida a partir da leitura conjugada ou dissociada dos textos do Direito Positivo (Lei, Decretos, decisões judiciais, etc.), e que possui como elementos essenciais um antecedente e um conseqüente normativo. A norma é, portanto, uma estrutura lógico-sintática de significação que conceitua fatos e condutas. Conforme bem leciona Paulo de Barros Carvalho :
“(...) A norma jurídica é exatamente o juízo ou o pensamento que a leitura do texto provoca em nosso espírito.”
Entretanto, diferente da simples proposição e também da norma no sentido amplo da palavra, a norma jurídica exige antecedentes e conseqüentes.
Usando o exemplo anterior, “É proibido Fumar”:A frase, como observado anteriormente, é uma proposição, pois o leitor extrai a significação de que não é permitido que se fume.
Contudo, tal prescrição só será Norma Jurídica se conjugada a outro texto prescritivo ou ato normativo existente dentro do sistema de Direito Positivo que estabeleça conseqüências para a infração à conduta prescrita. Caso contrário, a Norma Jurídica será deficiente.
Observe, portanto, que a diferença entre a proposição e a Norma Jurídica é a existência de antecedentes e conseqüentes na sua formação inteligível.
Tomando novamente o exemplo, “é proibido fumar”, se isto é uma proposição solta e dispersa de conseqüências, não será mais do que um enunciado prescritivo, ou seja, será apenas uma forma usada na função pragmática de prescrever condutas e, assim, não será Norma Jurídica, pois estas exigem significações construídas a partir dos textos estruturados consoante uma forma lógica dos juízos condicionais, compostos pela associação de duas ou mais proposições prescritivas.
Veja o ensinamento de Ricardo Guastini para buscar mais clareza:
"Un documento normativo (una fonti del diritto) è un aggregato di enunciati del discorso prescritivo."
E o quadro seguinte para maior esclarecimento:
É claro que, se a norma de que estamos tratando é de ordem jurídica, a interpretação normativa para fins de aplicação prática dos enunciados prescritivos é restrita e monopolizada pelo Estado, principalmente pelo Poder Judiciário.

Assim ensina a lição tirada do Vocabulaire Juridique de Gérard Cornu:

"La norme juridique émane d'une autorité investie d'un pouvoir pour qui elle est exécutoire et est susceptible d'être contrôlée."

Isso quer dizer que, embora possa haver divergências doutrinárias entre estudiosos do Direito Positivo, só a instituição devidamente autorizada poderá impor qual das interpretações deverá prevalecer.

Exemplo disso é o que ocorreu no caso da discussão acerca do FGTS, por exemplo, na qual se tentava estabelecer se ele seria ou um Tributo, discussão que, diga-se de passagem, tem sido das mais controvertidas. Neste caso, só o STF por meio de seu julgamento poderia emitir a um parecer normativo, uma Norma Jurídica, definindo se o mesmo é ou não um Tributo, o que, inclusive, já fez por meio do Recurso Extraordinário 100.249 no qual foi decidido que o FGTS não tem natureza tributária.

Ante o exposto, pode-se concluir que a Lei nada mais é do que um veículo introdutor de Normas Jurídicas, na qual a Norma Jurídica é que passará a integrar o sistema de Direito Positivo, pois que, é ela a essência, enquanto a Lei é mero suporte físico para sua existência.

Tanto isso é verdade que, além da Lei, existem outros meios de inserção de Normas Jurídicas, ou veículos introdutores de Normas Jurídicas, tais como as decisões judiciais que produzem Normas Jurídicas do tipo Individual e Concreta.

Todavia, tal assunto não merecerá aqui a devida consideração porque demandaria a realização de uma subclassificação das Normas Jurídicas, qual seja, a taxonomia das normas Gerais e Abstratas e das Individuais e Concretas, as quais demandam um estudo próprio em outra oportunidade. O importante aqui será demonstrar que, embora tudo isso possa parecer filosofia desnecessária e estéril para a aplicação do Direito no dia-a-dia forense, é, ao contrário, de extrema importância para tal exercício, conforme será demonstrado a seguir.

III. Aplicação Prática da Teoria da Norma Jurídica.

Importantes construções interpretativas do Direito têm como ponto de partida a Norma Jurídica, o que torna difícil entender o pouco relevo que algumas propostas cognoscentes lhe atribuem.

Para demonstrar a importância do entendimento quanto à teoria da Norma Jurídica cujo tópico anterior tentou explicar, seguem-se aqui alguns exemplos de onde se aplica tal teoria na forma prática, ou seja, a comprovação final de que o texto de Lei não é em si a Norma Jurídica e de que é de suma importância saber disso, pois existem até mesmo Leis com Normas Jurídicas incompletas e deficientes que, uma vez não observadas no momento da sua aplicação, perdem completamente sua eficácia.

No primeiro exemplo, observe a seguinte lei fictícia:
Prefeitura Municipal de Estagira, Lei Municipal 001 de 10/01/2009
Art. 1º Esta taxa de controle de obras tem como fato gerador a prestação de serviço de conservação de imóveis, por empresa ou profissional autônomo, no território municipal.Art. 2º A base de cálculo dessa taxa é o preço do serviço prestado.§1º - A alíquota é de 3%.§2º - O valor da taxa será calculado sobre o preço deduzido das parcelas correspondentes ao valor dos materiais utilizados na prestação do serviço.Art. 3º Contribuinte é o prestador de serviço.Art. 4º Dá-se a incidência dessa taxa no momento da conclusão efetiva do serviço, devendo, desde logo, ser devidamente destacado o valor na respectiva “NOTA FISCAL DE SERVIÇOS” pelo prestador de serviço.Art. 5º A importância devida a título de taxa deve ser recolhida até o décimo dia útil do mês subseqüente, sob pena de multa de 5% sobre o valor do tributo devido.Art. 6º Diante do fato de serviço prestado sem a emissão da respectiva “NOTA FISCAL DE SERVIÇOS”, a autoridade fiscal competente fica obrigada a lavrar “Auto de Infração e Imposição de Multa”, em decorrência da não-observância dessa obrigação, no valor de 50% do valor da operação efetuada.

Pois bem, agora se pergunta ao caríssimo leitor: Quantas Normas Jurídicas há nessa lei? Qual delas afinal institui o tributo?

A Norma que institui o tributo, como observado anteriormente, não é um artigo apenas e não está necessariamente escrita explicitamente no texto de lei. Ela é o fruto de um trabalho de interpretação do texto de Lei, observando seus antecedentes e conseqüentes.
Isto porque a Norma que institui o tributo é a Regra Matriz de Incidência Tributária, que, neste caso, é a conjugação de: art. 1°; art. 2°, § 1°; art. 2° caput; art. 3° e art. 4°; conforme explicitado a seguir:
Antecedentes:
Critério material: prestação de serviço de conservação de imóveis.
Critério temporal: momento da conclusão efetiva do serviço.
Critério espacial: no território municipal.
Conseqüentes:
Critérios qualitativos: (sujeitos ativo e passivo)sujeito ativo: o município de Estagira. sujeito passivo: prestador do serviço.
Critérios quantitativos:Base de Cálculo: preço do serviço prestado, deduzido das parcelas correspondentes ao valor dos materiais utilizados na prestação do serviço. Alíquota: 3%.
Utilizando este mesmo esquema, veja como se extrai as Normas Jurídicas que estão contidas na fictícia lei que homenageia a antiga cidade onde nasceu o filósofo Aristóteles:
A primeira como já observado, é a Regra Matriz de Incidência Tributária.
A segunda concerne ao destaque do tributo na Nota fiscal, art. 4º:
Antecedente:Concluído o Serviço
Conseqüente: Deve-se destacar o valor do tributo na nota fiscal
A terceira trata da data do recolhimento do tributo. Extrai-se do Art. 4º combinado com art. 5º:
Antecedente: Executado o Serviço.
Conseqüente: Deve-se recolher o tributo até o décimo dia útil do mês subseqüente.
Há uma quarta Norma que trata da multa pelo não recolhimento. Está evidenciada no art. 5º:
Antecedente: Não recolhido o tributo na forma da lei.
Conseqüente: É devida a multa de 5% sobre o valor do tributo.
Ainda há uma quinta Norma que trata da não emissão da nota fiscal, contida no art. 6º:
Antecedente: Prestado o Serviço sem a emissão de nota fiscal.
Conseqüente: É devida a multa de 50% sobre o valor do tributo.
Por derradeiro, há uma sexta Norma que trata do dever de lavrar o auto de infração. Também contida no art. 6º:
Antecedente: Prestado o serviço sem a emissão de nota fiscal.
Consequente: Deve a autoridade fiscal lavrar o Auto de Infração.
Um outro excelente exemplo da importância prática existente por trás da Teoria da Norma jurídica e que é fundamental para o dia-a-dia forense é a questão da Declaração de Inconstitucionalidade sem Redução do Texto Legal.

Esta espécie de declaração de inconstitucionalidade é utilizada sobre Lei ou Ato Normativo cuja interpretação possa ser múltipla, e age como um mecanismo para atingir uma interpretação que seja compatível com a Constituição e assim preservar a constitucionalidade daquela Lei ou Ato.
Nas palavras de Alexandre de Moraes,

“(...) no caso de lei ou ato normativo com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico.”

Ora, neste caso o que é observado é a Norma Jurídica. E o STF ou outra instância do Judiciário, órgão devidamente autorizado a emitir Normas Jurídicas, determinará qual será a interpretação (significação) que uma Lei ou Ato Normativo deverá conter.
Assim, se há uma Lei (Lei N), cujo texto é constitucional, mas que a sua aplicação está sendo feita de forma inconstitucional (aplicação de forma X), o Judiciário poderá determinar que a Lei “N” seja aplicada de forma “Y”, uma vez que a interpretação “X” é inconstitucional.

Ou seja, a lei pode ser constitucional, mas a Norma Jurídica pode ser extraída pela autoridade competente (um juiz de primeira instância ou uma autoridade administrativa, por exemplo) de forma equivocada e inconstitucional. Portanto, uma lei pode ter várias Normas Jurídicas e, em alguns casos bizarros, até Norma Jurídica incompleta ou deficiente.

Eis um caso em que a Lei possui Norma Jurídica deficiente: Observe esta estranha e curiosa decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, noticiada pela assessoria de comunicação daquele Tribunal, transcrita abaixo.

16/03/2009 - Recusa de moedas não gera indenizaçãoUma cliente do Banco Bradesco S/A teve seu pedido de indenização por danos morais negado pela 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). V.L.B.B teria tentado pagar uma conta no valor de R$ 44,54 com uma grande quantidade de moedas de R$ 0,50.De acordo com a V.L.B.B., o banco não teria observado o artigo 9º da Lei nº 8.697/1993, que dispõe que “ninguém será obrigado a receber, em qualquer pagamento, moeda metálica em montante superior a cem vezes o valor respectivo da face”, o que não era o seu caso. A mulher alegou que houve humilhação pelo modo como foi tratada na agência.O Banco Bradesco afirmou que é procedimento normal da instituição encaminhar a pessoa que porta muitas moedas a outro setor, o que é, inclusive, de conhecimento geral.Em 1ª Instância, a ação foi julgada improcedente. Inconformada, V.L.B.B. recorreu ao TJMG, requerendo a reforma da sentença. Os desembargadores da 9ª Câmara Cível, no entanto, negaram provimento ao recurso.Para o relator do processo, desembargador Generoso Filho, para se falar em dano moral, não basta o simples desapontamento ou dissabor. Para que haja o dever de indenizar, é necessária a prova de que o fato tenha causado sofrimento, vexame e humilhação, atingindo a honra do indivíduo, algo que a apelante não conseguiu comprovar.Portanto, para os desembargadores, a conduta do funcionário ao ter recusado o recebimento do valor, mesmo que tenha causado aborrecimento à cliente, não caracteriza uma ação e o pagamento de danos morais.Acompanharam o voto do relator, os desembargadores Osmando Almeida (revisor) e Pedro Bernardes (vogal).
Assessoria de Comunicação Institucional – Ascom - TJMG - Unidade Goiás
Ora, analise: Existe uma obrigação legal que impõe o recebimento de moedas até o limite previsto em lei de “cem vezes o valor respectivo da face” da moeda. Mas se alguém descumpre tal determinação legal, como ocorreu com o banco, o que se pode fazer?
Nada?

Pelo visto, estamos diante de uma lei em que a norma jurídica está incompleta!

Pense bem, se numa lanchonete você quiser pagar com moedas um pacote de bolachas no valor de 03 reais e o vendedor, cordialmente (de forma que não cause dano moral), recusar a receber, não há nada que se possa fazer! Pelo menos, se considerado o entendimento da decisão acima noticiada.
Neste caso, o Egrégio Tribunal Mineiro, no momento em que extraiu a Norma Jurídica Geral e Abstrata contida na Lei, deveria ter percebido tal deficiência nela existente e, ao emitir sua decisão (a qual também contém Norma Jurídica, porém de caráter Individual e Concreta) impor uma indenização sob caráter pedagógico, corrigindo a falha cometida pelo legislador. Entretanto, creio eu, que aquele Tribunal, assim como outros por aí, não está atento à questão da teoria da Norma Jurídica.

Isso é muito sério, pois o legislador nem sempre está atento a questões jurídicas que deveriam ser resolvidas pelos Tribunais e, por isso, a necessidade de que o Judiciário fosse mais atuante no momento em que extrai e produz normas jurídicas e realiza a hermenêutica do ordenamento, fazendo seu trabalho de Fonte de Direito que é.

Todavia, a aplicação do Direito nos tribunais tem estado estrita a uma hermenêutica baseada unicamente numa abordagem pouco epistemológica do Direito.

Infelizmente, o que se vê muitas vezes nas decisões e argumentações jurídicas é uma excelente demonstração da capacidade de ler, ato que até mesmo as crianças conseguem.

Ao contrário, o que se espera de um jurista, seja ele juiz, advogado ou representante do Ministério Público, é que tenha a capacidade de aplicar os artigos de lei submetendo-os a uma hermenêutica sistemática e harmônica com o ordenamento existente, com o sistema de Direito Positivo.

E hermenêutica superficial é, muitas vezes, o que acontece quando se está diante de um caso em que se aplica o princípio do Lex Specialis derrogat Lex Generalis.

Por este princípio costuma-se realizar, superficialmente e equivocadamente, a interpretação de que uma Lei Especial (ex: Código de Defesa do Consumidor e Lei de Execução Fiscal) que verse sobre determinado tema deva prevalecer sobre uma Lei Geral (ex: Código de Processo Civil e Código Civil) interpretação esta um tanto equivocada.

Partindo de uma hermenêutica fundamentada na teoria da Norma Jurídica, verifica-se que interpretar o princípio da Lex Specialis derrogat Lex Generalis não é apenas translada-lo do Latim para o Português como sendo Lei Especial derroga Lei Geral, assim, tão simplesmente.

Isto porque, como enfatizado no tópico anterior, a Lei é mero suporte físico da Norma Jurídica, portanto, o que se extrai do referido princípio é que Norma Jurídica Especial derroga Norma Jurídica Geral.

Assim, sempre que uma Norma Jurídica específica contida em uma Lei Geral não tenha correspondente na Lei Especial, continuará a vigorar normalmente aquela e não esta, ainda que ambas versem sobre o mesmo assunto.

Observe o exemplo para melhor compreensão: A recente reforma do Código de Processo Civil (Lei Geral) trouxe inovações no procedimento de Execução, dentre elas, a contida no artigo 739-A, a qual regula e reduz a possibilidade de concessão do efeito suspensivo nos Embargos do devedor.

Por outro lado, no caso das Execuções Fiscais, existe uma Lei Especial, a Lei 6.830/80, que regula o procedimento desta espécie de Execução, disciplinando as condições, o prazo para oferecimento dos Embargos do Devedor e o respectivo início da contagem, bem como o prazo para impugnação e as matérias vedadas e permitidas ao enfrentamento. Por esta razão, muito se tem discutido acerca da aplicação do artigo 739-A do CPC sobre os Embargos do Devedor na Execução Fiscal, posto que, sendo este procedimento regulado por Lei Especial, tais regras a respeito do efeito suspensivo trazidas pela Lei Geral (art. 739-A do CPC) não deveriam ser aplicadas à Execução Fiscal (regulada pela Lei Especial 6.830/80) por força do princípio Lex Specialis derrogat Lex Generalis.

Contudo, se realizada uma hermenêutica da Lei de Execuções Fiscais fundamentada na Teoria da Norma Jurídica, verificar-se-á que não existe nela uma Norma Jurídica que regule estritamente o efeito suspensivo nos Embargos do Devedor.

E considerando que, não a Lei Especial, mas sim a Norma Especial é que se sobrepõe à Norma Geral, é possível concluir que o artigo 739-A do Código de Processo Civil prevalecerá sobre a Lei Especial que, como visto, não tem Norma Jurídica que verse a respeito do efeito suspensivo nos Embargos do Devedor. Inclusive, tem sido este o entendimento do STJ a respeito de tal discussão. Vide o julgamento do Recurso Especial 1024128/PR.

Portanto, se considerada a Teoria da Norma Jurídica na aplicação do princípio Lex Specialis derrogat Lex Generalis,, é possível a existência de casos em que a Lei Geral prevalecerá sobre a Lei Especial. Este entendimento é partilhado por muitos adeptos da Teoria da Norma Jurídica, tais como o Juiz Paulo César Conrado, eminente professor da USP e da PUC/SP, quem tive o sincero prazer de conhecer pessoalmente, e o renomado tributarista Paulo de Barros Carvalho.

Por fim, conclui-se que o trabalho de identificar a Norma Jurídica está intrínseco ao bom desempenho do trabalho de interpretação do Sistema de Direito Positivo.

Ante o exposto, espero ter concluído o objetivo proposto, mostrando, não só as nuances científicas que envolvem a teoria da Norma Jurídica, como também sua indispensável análise no âmbito da prática forense.

Recurso Especial e Extraordinário - Breve Exposição e Crítica aos Absurdos da Revista Veja

A revista Veja, Edição 2021-ano 40-nº32 de 15 de agosto de 2007, cuja reportagem de capa é “A praga da Impunidade – Por que eles não vão presos” traz na página 72 uma relação de seis itens que revista chama de “nós que emperram a justiça”, dentre os quais diversas informações equivocadas são passadas e demonstram o baixíssimo conhecimento jurídico de seus jornalistas e consequentemente a baixa capacidade crítica do tema.


Porém um dos itens, o número cinco, me chamou maior atenção devido ao grau homérico da bobagem ali escrita. Transcrevo:

“5 – Nó do excesso de apelações


Os condenados capazes de pagar bons advogados conseguem apelar a três tribunais. Até a condenação em última instância, eles ficam em liberdade.”(grifei)

A meu ver, esta revista de forma irresponsável, torna as informações equivocadas, causando a falsa impressão no público leigo de que os cidadãos “comuns” ou de baixa renda não têm direito a recorrer aos Tribunais Superiores (STJ e STF) porque não são, como a revista diz, “capazes de pagar bons advogados” (como se o preço cobrado por um advogado, necessariamente o definisse como bom ou mal profissional.). Além disso, faz com que tal público forme a opinião que quaisquer casos podem ser objeto de recurso a Tribunal Superior. O leitor leigo com um caso particular tramitando perante o Judiciário passará a crer, baseando-se nesta reportagem, que se seu processo não passou pelas instâncias superiores é porque não exerceu seu direito à prestação jurisdicional com plenitude, que teve, em outras palavras, sua defesa prejudicada.

Isso porque, a revista, demonstrando total desconhecimento do assunto, refere-se aos recursos para Tribunais Superiores, também conhecidos por recursos extremos, (Recurso Especial para o STJ e Recurso Extraordinário para o STF) como Apelação, recurso este que, diferentemente dos recursos extremos, faz uma re-análise geral do processo, inclusive da matéria fática e probatória, ou seja, re-analisa até as provas produzidas perante a primeira instância. Por outro lado, os recursos extremos, para sua interposição, têm de cumprir requisitos específicos quais analisaremos adiante neste estudo, diferente da Apelação, que pode ser interposta livremente após a publicação da sentença de 1ª instância, dentro do prazo legal.

Não esclarece ao público leigo que o processo, na verdade, sofre um “afunilamento” no que se refere aos recursos extremos. Uma separação ou uma demanda simples por vício redibitório em um veículo, dificilmente ensejará matéria para a impetração de recursos extremos e levará o leigo, que num caso destes litiga, a pensar que seu direito à prestação judiciária é “menor” do que o daqueles que são alvos da reportagem.

Diante de tais falácias que, sem a menor vergonha, essa revista teve a coragem de publicar, sinto-me no dever de melhor esclarecer aos leitores, neste breve estudo que realizarei com meu modesto conhecimento, sobre os tais recursos aos Tribunais Superiores, quais têm, individualmente, sua finalidade própria, requisitos extremamente específicos, e que diferentes da Apelação, avaliam apenas matéria de direito.

Como qualquer profissional do Direito, tenho minhas críticas ao Poder Judiciário e certas legislações existentes, mas, formar opinião equivocada numa população que já é tão mal informada é sem dúvida uma grande irresponsabilidade desta imprensa.

Passo às Análises.

RECURSO ESPECIAL

O Recurso Especial é dirigido ao STJ e cabível apenas nas seguintes hipóteses, em que a decisão recorrida: (CF. art. 105, inciso III)

a) Contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhe vigência;


b) Julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal;

c) Der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro Tribunal.

E mais, ao fazê-lo, deve o recorrente demonstrar que a matéria já foi antes suscitada e decidida pela instância ordinária, como prova do preenchimento do requisito atinente ao prequestionamento. Na prática, esse prequestionamento quase sempre é feito através de embargos declaratórios à instância ordinária, pois o mesmo deverá ser extremamente claro e objetivo.

Deve o recorrente, ao interpor o recurso, indicar em qual das alíneas do inciso III do art. 105 da CF, encontra-se enquadrada a sua irresignação, demonstrando, ainda, que a matéria discutida no recurso já foi levantada em momento anterior e decidida pelo Órgão competente, tudo visando provar o preenchimento do requisito relativo ao prequestionamento anteriormente citado.

Em suma, o Recurso Especial visa seja pacificado dentro da federação o entendimento a ser dado sobre a interpretação de normas infraconstitucionais, evitando-se a proliferação de diferentes decisões sobre um mesmo assunto, o que importaria em manifesta instabilidade judicial.

No Recurso Especial qualquer consideração relativa à matéria fática deve ser abstraída, limitando-se o recorrente a debater matéria jurídica. A exposição da matéria fática serve para ilustrar a peça processual, quando muito para demonstrar a origem do descumprimento da norma infraconstitucional argüida pelo recorrente como fundamento da sua irresignação. Apenas para ilustrar a sustentação feita, no sentido de ser inadmissível a interposição do recurso arrimado simplesmente na alegação de questões fáticas. Nesse sentido, trago à baila decisão do STJ sobre o themas debandi:

“RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONSIDERAR ELEMENTOS DE FATO DIVERSOS DAQUELE EM QUE SE ASSENTOU O ACÓRDÃO RECORRIDO. Destina-se o recurso a velar pela exata aplicação do direito aos fatos que as instâncias ordinárias soberanamente examinaram” (STJ – 3ª Turma, Ag.3742 – RJ- Ag.Rg, rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 04.09.1990,DJU 09.10.1990, p.10.895).

Como dito anteriormente, a matéria probatória não é analisada no Recurso Especial e, consequentemente, seu reexame não enseja recurso especial, por força da Súmula 07 do STJ:

“07 – A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”

Outro ponto importante se destacar, é que por força da redação da alínea III do art. 105 da CF, qual dispõe que o Recurso Especial apenas pode ser interposto contra decisões proferidas por Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, é pacífico o entendimento de que não cabe recurso especial contra decisões proferidas pelos Colégios Recursais de Juizados Especiais. Isto porque, ditos colégios, segundo a doutrina, não se qualificam como tribunais, desautorizando-se por essa razão a utilização do Recurso Especial no âmbito dos Juizados Especiais.

“art. 105 – Compete ao Superior Tribunal de Justiça:


III – Julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios,...”

Neste caso, há quem defenda (grande parte da doutrina) que, ocorrendo qualquer das hipóteses motivadoras de interposição do Recurso Especial o remédio adequado seria a impetração do Mandado de Segurança.

Todavia, a meu ver, o writ, sendo ação constitucional perfeitamente delineada, não deve ser admitido como substitutivo nem de ação judicial, nem de recurso processualmente previsto. Não há previsão legal para sua admissibilidade. Ademais, deve-se observar ainda a súmula 268 do STF que veda expressamente a impetração de mandado de segurança contra decisão transitada em julgado.

De qualquer forma, ainda que admitida a impetração do Mandado de Segurança, esse não seria analisado pelo STJ tal qual o Recurso Especial e sim pelo próprio Colégio Recursal do Juizado Especial, conforme jurisprudência predominante.

Quando o recorrente ingressa com recurso especial tendo como base a infração ao dispositivo de lei federal, deve indicar, de forma numérica, qual teria sido a norma legal violada. Tal indicação deve ser de “forma direta e frontal e não oblíqua”(STJ AgRg 82517). Por lei federal, entende-se a lei editada para viger em todo o território nacional, regulamentos e decretos, excluindo-se os demais tipos normativos não incluídos neste rol.


Já a hipótese constante na alínea b do art 105 da CF, inciso III, geralmente ocorre quando há competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre determinada matéria, neste caso o pedido deve ser de afastamento da lei local, dando-se preferência pela aplicação de lei federal.

Por fim, no caso de interposição por divergência jurisprudencial, hipótese da alínea c do inciso III do art.105 da CF, deve a parte demonstrar que a decisão proferida no seu processo diverge de outras decisões tomadas sobre a mesma matéria por outros Tribunais da federação, transcrevendo o acórdão paradigma e a indicação da fonte da qual foi este extraído, sendo esta fonte oficial, autorizada ou credenciada, pedindo portanto, a pacificação da matéria nos termos da decisão paradigma.

Na prática, embora a confecção do recurso especial seja, a meu ver, muito simples, vez que abstraída a matéria fática/probatória, seu conhecimento e julgamento pelo STJ é algo que encontra certa dificuldade. Isso porque, ao interpô-lo é preciso que o Tribunal de Justiça prolator do acórdão recorrido admita a subida do recurso ao STJ e este por sua vez, admita o seguimento do mesmo. À minha impressão, existe certa disposição do TJ recorrido em negar a subida dos Recursos Especiais, bem como do STJ em negar o seguimento. Há uma estatística não confirmada de que a cada dez Recursos interpostos apenas um tem seguimento e é finalmente julgado pelo STJ.

Dentre as várias súmulas usadas nas decisões acima referidas para inadmissibilidade dos recursos extremos, algumas merecem destaque pela sua aplicabilidade no dia-a-dia forense, cuja aplicabilidade se dá tanto para o Recurso Especial quanto para o Recurso Extraordinário:

- Súmula 282 do STF: qual exige que o recorrente suscite, em sua irresignação, matéria antes argüida em outro recurso processual, e decidida pela instância ordinária;

- Súmula 279 do STF: impede que a parte suscite em recurso especial e/ou em recurso extraordinário questões de fato, atinentes à valoração da prova produzida, indicando, por exclusão, que a matéria a ser debatida nos recursos extremos deve ser matéria de direito; ( no caso do recurso especial se usa também a súmula 07 do STJ)

- Súmula 281 do STF: impõe à parte o dever de esgotar à instância ordinária, antes do ingresso dos recursos extremos, utilizando-se de todas as espécies recursais cabíveis para a impugnação da decisão recorrida (geralmente embargos de declaração e embargos infringentes);

-Súmula 13 do STJ: aplicável especificamente ao recurso especial interposto com base na alínea c do inciso III do art. 105 da CF, exige que o recorrente, para demonstrar a divergência jurisprudencial sobre determinada matéria, colete decisões originárias de outros Tribunais do país, não se admitindo a coleta de julgados vindos do mesmo Tribunal que prolatou a decisão recorrida.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Assim como o Recurso Especial, o Recurso Extraordinário apresenta âmbito de interposição limitado. Ele presta-se exclusivamente à uniformização de matéria constitucional. É dirigido ao STF, que atua como guardião da Constituição Federal.

Dessa forma, também não admite este recurso a revisão de matéria fática. O Excelso Pretório preocupa-se, exclusivamente com a manutenção da higidez dos dispositivos previstos na Carta Magna, prolatando “decisões-modelo” sobre os temas constitucionais para servir de orientação aos Tribunais da federação.

É cabível nas seguintes hipóteses: (art. 102, inciso III da CF)

a) Contrariar dispositivo da Constituição Federal;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida a lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição.


Diferentemente do Recurso Especial, o Recurso Extraordinário é cabível no âmbito dos Juizados Especiais. Isso porque combate decisão originária de órgão judicial que não necessita ter status de Tribunal, por força da redação da alínea III do art. 102 da CF:

“art. 102 – Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:


III – Julgar mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância,...”

Fato curioso, é que o Recurso Extraordinário pode também ser aforado diretamente contra decisão de Juiz de 1ª instância, desde que tal decisão não esteja sujeita a um recurso ordinário. Nesse sentido:

“Independentemente de a decisão ter, ou não, sido proferida por tribunal, cabendo, portanto, recurso extraordinário de decisão de Juízo de 1º grau, nas causas de alçada, desde que a decisão não esteja sujeita a nenhum recurso ordinário”(RE 140362-4, STF).

Sempre que aforado o recurso extraordinário interposto com fundamento na alínea a é necessário que se faça menção do dispositivo constitucional violado, de forma expressa e direta, confrontando a norma constitucional com a situação específica do processo. Nesse sentido:

“Alegação de ofensa indireta à Constituição não dá margem ao cabimento do recurso extraordinário” (STF – AgRg 210550-7 MG)

Todavia, há casos em que os dispositivos da Constituição estão dispostos de forma genérica, tais como diversos incisos do art.5º. Nestes casos, em que inexiste preceitos constitucionais específicos capazes de abraçar todas as questões que ocorrem no dia-a-dia forense, mister demonstrar a similitude com a questão discutida na ação judicial.

Enfim, espero que, com esta breve exposição sobre os recursos extremos, possa o leitor entender a utilização de tais recursos e perceber a importância dos mesmos para a segurança jurídica e para o desenvolvimento da Justiça no Estado Democrático de Direito.

Analisando: Crime de Apropriação Indébita Previdenciária - Artigo 168-A do Código Penal Brasileiro

Marx já dizia que se a se a aparência e a essência dos fenômenos sempre coincidissem, toda ciência seria desnecessária. Essa linha de pensamento ajusta-se “como uma luva” quando se fala em crimes empresariais societários como é o caso do crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no artigo 168-A do Código Penal Brasileiro.


Isso porque os crimes societários são envolvidos de pluralidade subjetiva e co-autoria, exigência constitucional para tornar efetivos os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Portanto, “...para ser incluído na denúncia, não basta ser sócio de pessoa jurídica, ou nela, exercer atividade de administração. Fundamental é evidenciar (juízo de probabilidade) haver praticado a conduta (comissiva ou omissiva) penalmente relevante.”(STJ, 6ª TURMA, RHC 5.053/RJ, REL. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 22-10-1996, DJU de 7-4-1997, p. 11162.)

Dessa forma, é necessário atentar-se para o fato que nem sempre, aquele que aparentemente é o responsável pela administração dos recursos da empresa e do devido repasse ao INSS, nem sempre é, na sua essência o real administrador. Isso ocorre porque o simples fato de determinado acusado estar inserido no contrato social da empresa e, potencialmente, vir a tomar conhecimento de irregularidades tributárias, não o torna responsável por elas, vez que, eventualmente não tivesse ele poderes para deliberar sobre o assunto.

Ou seja, nas palavras do Egrégio STJ:

“O simples fato de ser sócio, diretor ou administrador de empresa não autoriza a instauração de processo criminal por crimes praticados no âmbito da sociedade, se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da ação penal, a mínima relação de causa e efeito entre as imputações e a sua função na empresa, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal objetiva.” (HC 56058 / SP ; HABEAS CORPUS 2006/0054198-6, Ministro GILSON DIPP (1111) T5 - QUINTA TURMA - 15/08/2006 - DJ 11.09.2006 p. 325)

Além disso, não se pode presumir a finalidade na conduta dos agentes baseando-se apenas na simples fato de figurarem no contrato social, pois seria verdadeira afronta à Teoria Finalista da Ação, amplamente adotada no Brasil e que, inclusive, inspirou a reforma penal brasileira de 1984 e a conseqüente alteração da Parte Geral do Código Penal, no que concerne à observação do fato natural e do fato típico.

Outro aspecto muito comum de se observar nos delitos de apropriação indébita previdenciária, é o agente priorizar o pagamento de todos os funcionários quando não há alternativa, senão manter-se em débito com Fisco, em razão de o faturamento da empresa, à época do não recolhimento, não ser suficiente para saldar todas as despesas e dívidas contraídas, fato este que caracteriza a inexigibilidade de conduta diversa, admitida no processo penal como excludente de culpabilidade, que a meu ver, engloba também a retirada de pro-labore por parte do agente administrador. Isso porque, dada a sua natureza alimentar, não poderia o agente deixar de subsistir para pagar tributos.


Nesse sentido, é o entendimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

“A única possibilidade de excluir a responsabilidade do acusado seria a comprovação de que teria sido posto ante a escolha de pagar os salários ou as contribuições previdenciárias. Somente a satisfação da obrigação trabalhista de caráter alimentar justificaria o sacrifício do tesouro público.”(STRF3, 5ª T., ACR 9702-SP,Proc. n. 200003990137350, Relator(a) Juiz André Nabarrete, J.26.112002,DJU 18.02.2003, P.597).

Assim, se ventilado nos autos o faturamento insuficiente da empresa, não há que se falar em culpa.

Doutra espia, está a ausência de bem jurídico a ser tutelado pela esfera penal. Analisemos:

O Estado, através da Constituição, disciplina a relação jurídica tributária estabelecida entre o sujeito ativo, credor, e o sujeito passivo, devedor, desde a sua criação com base na atribuição de competência legislativa até a sua arrecadação e extinção. Dessa forma, portanto, a relação jurídica tributária e o crédito tributário tornam-se, em princípio, um bem jurídico cuja disponibilidade vem disciplinada pela norma.

O Direito Penal, por sua vez, tem a função de proteger o cumprimento das normas que regulam o nascimento, o desenvolvimento e a extinção da obrigação tributária, bem como sancionar a conduta que interfere no direito do Estado de estabelecer e conduzir a relação jurídica tributária e o crédito tributário dela decorrente. Em outras palavras, cabe à tutela do Direito Penal a análise de condutas que empeçam que a obrigação tributária seja devidamente constituída e gerenciada pelo Estado, como por exemplo, condutas de fraudar fiscalização, falsificar documentos ou prestar declarações falsas. Ou seja, como sustenta o renomado jurista Rui Stoco, “a objetividade jurídica do delito em questão é o dever do Estado em fazer funcionar e sustentar a máquina estatal, coibir que a Fazenda Pública seja fraudada no que respeita aos valores que tem a receber e tutelar o direito de impor o tributo. Visa a lei penal tributária garantir a segurança ao fisco de poder impor e cobrar os tributos devidos por lei, e essa segurança só é possível se as relações tributárias entre a Fazenda Pública e os contribuintes forem transparentes e idôneas. Portanto, o que a lei penal tributária pune não é a ausência de recolhimento dos valores aos cofres públicos, mas sim, a fraude, o ardil empregado para tentar “disfarçar” ou desconfigurar a relação obrigacional tributária entre o contribuinte e o Fisco para que só então o contribuinte se furte ao recolhimento do tributo. Assim ocorre porque é essa fraude que oculta a verdadeira relação tributária entre o sujeito passivo da obrigação e o sujeito ativo, impedindo, por via de conseqüência, que a Fazenda possa tomar as medidas necessárias para receber o tributo devido.”

Dessa forma, resta-se claro que não é erário público ou a Previdência social o bem jurídico a ser protegido pelo Direito Penal, e sim o Direito Constitucional do Estado de instituir e cobrar tributos.

Conclui-se, portanto, que o simples não recolhimento da contribuição previdenciária descontada dos empregados em nada afeta o direito do Estado de instituir e cobrar tributos, vez que a conduta “deixar de recolher no prazo legal”, se refere a um dever de recolhimento em determinada data, tratando-se de simples forma de quitação de dívida, que é disciplinado por um dispositivo legal que determina a data devida para o recolhimento e, portanto, possui uma natureza muito mais administrativa e regulamentar do que propriamente um bem jurídico. De modo que o não recolhimento na data aprazada não lesiona o bem jurídico estatal de instituir e cobrar tributos.

Logo, se não houve fraude, não foram omitidos documentos e informações, ou seja, se não se tentou enganar o fisco, não existe lesão que autorize e outorgue legitimidade à instituição da norma penal pelo seu descumprimento, pois, trata-se de tipificar condutas que não lesionam bens jurídicos.


Resta ainda uma rápida análise da constitucionalidade do tipo penal sob análise, porque se admitido que, trata-se de um crime omissivo próprio, como entendem alguns magistrados, não há que se falar em apropriação indébita, vez que a apropriação, como é sabido, é crime comissivo e, exige sim, o Animus Rem Sibi Habendi, ou seja, intenção de possuir a coisa.

Por outro lado, se alguns magistrados concluem que não se trata de apropriação indébita, porque crime omissivo próprio, pode-se concluir também que se trata de uma simples dívida. Ora, pois se o dinheiro nunca foi da União é, portanto, dívida tributária!

Assim, o simples não recolhimento de dívida tributária na data do vencimento, seja por falta de dinheiro ou improbidade administrativa, não pode constituir um crime! Nesse sentido, seria exatamente o mesmo, criminalizar a conduta de quem deixar de recolher uma parcela do Imposto de Renda de Pessoa Física na data de seu vencimento.

Destarte, o Estado não pode deter alguém por uma dívida, em face do artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal, qual, taxativamente, dispõe: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.”

Da mesma forma, disciplina o artigo 7º, item 7 do Pacto de San José da Costa Rica, qual o Brasil é signatário: “ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”

Portanto, conclui-se que, a simples tipificação como crime da conduta omissiva do sujeito passivo tributário (contribuinte ou responsável) não é compatível com texto constitucional à luz de uma leitura mais sofisticada e, especialmente, compromissada com a efetividade da Constituição, assim como dos direitos fundamentais que ela proclama.

Justiça Gratuita e o artigo 5º LXXIV da CF/88

É comum no cotidiano forense o profissional se deparar com impugnações aos pedidos de Justiça Gratuita onde fundamenta-se que o artigo 5 LXXIV da Carta Magna de 1988 não recepcionou a Lei 1.060 de 1950.


Contudo, o Instituto que trata o artigo 5º LXXIV da CF/88, “assistência jurídica integral e gratuita”, não se confunde com a Justiça Gratuita tratada pela Lei 1.060 de 1950.

E tal distinção é clara na lição do Professor Ernesto Lippmann:

“A assistência judiciária não se confunde com justiça gratuita. A primeira é fornecida pelo Estado, que possibilita ao necessitado o acesso aos serviços profissionais do advogado e dos demais auxiliares da justiça, inclusive os peritos, seja mediante a defensoria pública ou da designação de um profissional liberal pelo Juiz. Quanto à justiça gratuita, consiste na isenção de todas as despesas inerentes à demanda, e é instituto de direito processual”.


E conclui:

“Ambas são essenciais para que os menos favorecidos tenham acesso à Justiça, pois ainda que o advogado que se abstenha de cobrar honorários ao trabalhar para os mais pobres, faltam a estes condições para arcar com outros gastos inerentes à demanda, como custas, perícias, etc. Assim, freqüentemente, os acórdãos, ao tratar da justiça gratuita, ressaltam seu caráter de Direito Constitucional” (Os Direitos Fundamentais da Constituição de 1988, p. 379)

Não é outro o entendimento do não menos ilustre José Cretella Junior:

“denomina-se assistência judiciária o auxílio que o Estado oferece – agora obrigatoriamente – ao que se encontra em situação de miserabilidade, dispensando-o das despesas e providenciando-lhe defensor, em juízo. A lei de organização judiciária determina qual o Juiz competente para a assistência judiciária; para deferir ou indeferir o benefício da justiça gratuita, competente é o próprio Juiz da causa. A assistência judiciária abrange todos os atos que concorram, de qualquer modo, para o conhecimento da justiça – certidões de tabeliães, por exemplo -, ao passo que o benefício da justiça gratuita é circunscrito aos processos, incluída a preparação da prova e as cautelares. O requerente, antes de entrar com a ação, em juízo, deverá solicitar a assistência judiciária” (Comentários à Constituição, citado por Anselmo Prieto Alvarez in RT 778/49).

Nessa esteira, também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, veja-se o julgamento do ínclito Ministro Carlos Veloso:


"A garantia do artigo 5.º, LXXIV, assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, não revogou a de assistência judiciária gratuita da Lei n.º 1060, de 1950, aos necessitados, certo que, para obtenção desta, basta declaração, feita pelo próprio interessado, de que sua situação econômica não permite vir a Juízo sem prejuízo da sua manutenção ou de sua família. Essa norma infraconstitucional põe-se, ademais , dentro do espírito da Constituição, que deseja que seja facilitado o acesso de todos à Justiça" (STJ -2.ª T.; Rec.Extr. n.º205.029-6-RS; Rel.Min.Carlos Velloso; j.26.11.1996)

Mesmo entendimento tem o Egrégio. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, em julgado histórico (que, diga-se de passagem, é citado por todos os doutrinadores), no qual foi relator o então Desembargador, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, Cézar Peluso, assim asseverou:

“A condição de pobreza, enquanto requisito da concessão do benefício da justiça gratuita, adscrevendo-se à impossibilidade de custeio do processo, sem prejuízo próprio ou da família (art. 4°, caput, da Lei federal 1.060 de 5.2.50), não sofre com a circunstância eventual de a parte ter bens, móveis ou imóveis, se esses nada lhe rendem, ou se rendem não lhe evitaria aquele prejuízo. A mesma condição é, poroutro lado, objeto de presunção legal relativa, que, oriunda do mero asserto da parte cede apenas a prova em contrário (art. 4°, § 1°), produzida pelo impugnante (art.7°) ou vinda aos autos doutro modo (art. 8°)”

Ao final, com demonstração de sensibilidade social extremamente aguçada e, clareza do papel que compete ao judiciário na interpretação e aplicação das leis aos casos concretos, arrematou nos seguintes termos:

“Ora, à luz desses critérios, que são os da lei, não podia o Juízo, em interpretação inconciliável com o caráter generoso das garantias constitucionais do acesso à Jurisdição e da assistência judiciária (art. 5°, XXXV e LXXIV) desconsiderar a presunção júris tantum, sem prova, que teria de ser cabal, da suficiência de recursos” (TJSP - AI 162.627-1/8 - 2a. Câm. - j. 04.02.92 - RT 678/88).


Dessa forma, ao meu ver, não merece prosperar o entendimento dos nobres colegas quais afirmam que a Constituição de 1988 não recepcionou a Lei 1.060/50.